
Imagem muito replicada no Instagram e WhatsApp hoje.
Foi com espanto que em dezembro último parei para observar, do viaduto do Chá, a paisagem do Vale do Anhangabaú como terra arrasada. Naqueles poucos minutos, encostado no guarda-corpo, tive uma sensação de volta ao tempo, mais precisamente aos anos 1970 e sua corrida rumo ao progresso das metrópoles que “não podiam parar de crescer” à custa do verde. Vieram a cabeça edições da extinta revista Manchete da época apresentando a obra do Minhocão e Praça Roosevelt.
Passado meio ano, recebo hoje uma enxurrada de fotografias do resultado das obras. A premonição se concretizou, literalmente. Ganhamos um novo “Minhocão” para a metrópole, uma eficiente ilha de calor urbana. Pior do que o já árido e desagradável Largo da Batata em Pinheiros, o novo Anhangabaú não tem árvores ou qualquer vegetação sobre uma enorme laje impermeável e absorvente de calor que deve passar de 15.000 m² de ponta a ponta. Isso em uma das regiões mais cinzas e com menores índices de verde da urbes. Tem alguns chafarizes de água, que conhecendo o histórico de manutenção de tais estruturas públicas assemelhadas, terá um futuro incerto, e isso sem refletirmos de onde virá o escasso recurso água.

O centro de São Paulo já é uma importante ilha de calor urbana
Mas o inacreditável é a falta deliberada de natureza, ou a algo que remeta a ela no projeto – a biofilia, hoje tão apregoada. Porque árvores e o paisagismo não participam? É um equivoco achar que arborização e paisagismo afastam pessoas. O que afasta pessoas da rua é a falta de segurança pública, a falta de comércio vivo, de atrações culturais, de conforto térmico, a falta de natureza, enfim, de condições para criar um público variado e dinâmico. O verde, ao contrário atrai. Vide parques que conciliam florestas urbanas com amplos gramados, como o Ibirapuera e Villa-Lobos, que viviam lotados antes da pandemia, e tinham enormes filas de carros para entrar nos domingos. Fenômeno urbano esse que não é só do Brasil, a exemplo do Central Park em Nova Iorque. Aliás, quem é paulistano lembra da resposta tradicional para quando alguém lhe convidava para ir ao parque Villa-Lobos: “Mas lá não tem sombra, não tem árvore, é muito quente!” Problema que hoje passa o Parque do Povo, e que provavelmente passará o bastão ao novo Anhangabaú.
Se o projeto anterior, fruto de um concurso público vencido há quase 40 anos atrás pela paisagista Rosa Kliass e equipe foi desconsiderado, porque não propor um projeto do século 21, consciente da importância da vegetação urbana e dos serviços ambientais prestados para a saúde pública e qualidade de vida da população? São evidências cientificas amplamente confirmadas em todo o mundo nas últimas décadas, basta uma breve pesquisa no Google Acadêmico. Porque não compatibilizar o respeito a paisagem ancestral (que diga-se de passagem foi de natureza riquíssima nos arredores do ribeirão Anhangabaú séculos atras), e prestigiar a sua fauna e flora em projeto, inclusive como um patrimônio cultural e ferramenta de educação ambiental?
Enfim, uma pena. Teremos talvez que esperar mais 40 anos para que venha um novo projeto que mostre o caminho da cidade do futuro, que compreenda ser possível a harmonia entre a cidade construída, adensada, vertical, viva, dinâmica, divertida e a nossa extraordinária e necessária natureza nativa. Acredito nisso. A Floresta de Bolso de Mata Atlântica vizinha ao Largo da Batata é uma pequenina contribuição nesse sentido. Que um dia tenhamos um rio de verdade correndo do Viaduto do Chá ao Santa Ifigênia, e não de concreto armado.
Ricardo Cardim
Paisagista e Botânico

Minha vista em dezembro último

Antes, durante e depois no Google Earth